E-mails recém-obtidos oferecem um vislumbre de como uma narrativa de certezas foi criada acerca das origens naturais do novo coronavírus SARS-CoV-2, enquanto questões científicas fundamentais permaneceram por responder. As discussões internas e um primeiro rascunho de uma carta escrita por cientistas mostram especialistas a debaterem as lacunas de conhecimento e perguntas não respondidas sobre a sua origem em laboratório, mesmo que alguns procurassem reprimir as teorias “marginais” sobre a possibilidade do vírus ter sido fabricado em laboratório.
Cientistas influentes e muitos meios de comunicação descreveram as evidências de que o vírus teve origem na vida selvagem, e não em laboratório, como “esmagadoras”. No entanto, um ano após os primeiros casos relatados de SARS-CoV-2 na cidade chinesa de Wuhan, pouco se sabe sobre como ou onde o vírus foi criado. Compreender as origens do SARS-CoV-2, que causa a doença da COVID-19, pode ser crucial para prevenir a próxima pandemia.
Os e-mails do especialista em coronavírus, o Professor Ralph Baric – obtidos por meio de uma solicitação de registos públicos da U.S. Right to Know – mostram as conversas entre representantes da National Academy of Sciences (NAS) e especialistas em biossegurança e doenças infecciosas de universidades dos EUA e da EcoHealth Alliance.
A 3 de Fevereiro, o Escritório de Política de Ciência e Tecnologia da Casa Branca (OSTP) pediu às Academias Nacionais de Ciências, Engenharia e Medicina (NASEM) que “convocassem uma reunião de especialistas… para avaliar quais dados, informações e amostras são necessários para abordar o que não se sabe, a fim de compreender as origens evolutivas da 2019-nCoV e responder de forma mais eficaz ao surto e a qualquer desinformação resultante daí”.
Baric e outros especialistas em doenças infecciosas estiveram envolvidos na elaboração da resposta. Os e-mails mostram as discussões internas dos especialistas e um primeiro rascunho datado de 4 de Fevereiro.
O primeiro rascunho descreveu as “visões iniciais dos especialistas” de que “os dados genómicos disponíveis são consistentes com a evolução natural e que actualmente não há evidências de que o vírus foi fabricado para se propagar mais rapidamente entre os humanos”. Este rascunho de frase colocou uma questão, entre parênteses:
“[pedir a especialistas para adicionar locais específicos para a ligação?]” Ele também incluiu uma nota de rodapé entre parênteses: “[possivelmente adicionar uma breve explicação de que isso não impede uma fuga não intencional de um laboratório que estuda o evolução de coronavírus relacionados]. ”
Num e-mail, datado de 4 de Fevereiro, o especialista em doenças infecciosas Trevor Bedford comentou:
“Eu não mencionaria os locais de ligação aqui. Se começar a pesar as evidências, há muito a considerar em ambos os cenários”.
Por “ambos os cenários”, Bedford parece referir-se aos cenários de origem em laboratório e a origem natural.
A questão dos sítios de ligação é importante para o debate sobre as origens do SARS-CoV-2. Os locais de ligação distintos na proteína espigão do SARS-CoV-2 conferem uma ligação “quase ideal” para a entrada do vírus nas células humanas, e tornam o SARS-CoV-2 mais contagioso do que o SARS-CoV. Os cientistas argumentaram que os locais de ligação exclusivos do SARS-CoV-2 podem ter tido origem no transbordamento natural ocorrido em meio selvagem ou pela recombinação laboratorial deliberada de um ancestral natural, ainda não revelado, do SARS-CoV-2.
A carta final publicada a 6 de Fevereiro não mencionou locais de ligação ou a possibilidade de uma origem laboratorial. Ela deixa claro que mais informações são necessárias para determinar as origens do SARS-CoV-2. A carta afirma:
“Os especialistas informaram-nos que dados adicionais da sequência genómica de amostras virais geográficas e temporais diversas são necessárias para determinar a origem e a evolução do vírus. As amostras colectadas o mais cedo possível no surto em Wuhan e amostras no estado selvagem seriam particularmente valiosas”.
Os e-mails mostram o debate entre alguns especialistas sobre a necessidade duma linguagem clara para contraporem aquilo que descrevem como as “teorias malucas” da origem laboratorial. Kristian Andersen, autor principal de um influente artigo na Nature Medicine que promove a origem natural do SARS-CoV-2, disse que o rascunho inicial era “óptimo”, mas:
Eu questiono-me se precisamos de ser mais firmes na questão da engenharia”. Ele continuou: “Se um dos principais objectivos deste documento é o de combater essas teorias marginais, acho que é muito importante que o façamos com vigor e em linguagem simples…”
Na sua resposta, Baric teve como objectivo transmitir uma base científica para a origem natural do SARS-CoV-2.
“Acho que precisamos dizer que o parente mais próximo desse vírus (96%) foi identificado a em morcegos que viviam numa caverna em Yunnan, naChina. Isso é uma forte afirmação que suporta a origem em animais”.
A carta final dos presidentes do NASEM não se pronuncia sobre a origem do vírus. Afirma que,
“Já estão em curso estudos de investigação para melhor compreendermos a origem do nCoV 2019 e como se relaciona com os vírus encontrados em morcegos e noutras espécies. O parente mais próximo conhecido do 2019-nCoV parece ser um coronavírus identificado a partir de amostras derivadas de morcego colectadas na China”.
A carta fazia referência a dois estudos conduzidos pela EcoHealth Alliance e pelo Wuhan Institute of Virology. Ambos postulam uma origem natural para o SARS-CoV-2.
Algumas semanas depois, a carta dos presidentes do NASEM surgiu como uma fonte confiável para uma declaração de cientistas influentes publicada no The Lancet, que transmitia muito mais certeza sobre as origens do SARS-CoV-2. Relatamos anteriormente que o presidente da EcoHealth Alliance, Peter Daszak, redigiu essa declaração, em que afirmava que:
Cientistas de vários países… concluem de forma esmagadora que este coronavírus teve origem na vida selvagem.
Esta posição, observa a declaração, é:
“Suportada por uma carta dos presidentes das Academias Nacionais de Ciência, Engenharia e Medicina dos Estados Unidos”.
As nomeações subsequentes de Peter Daszak e outros aliados da EcoHealth Alliance para a comissão do The Lancet para a Covid-19 e de Daszak para as investigações da Organização Mundial da Saúde sobre as origens do SARS-CoV-2 significam que a credibilidade desses esforços é minada por conflitos de interesse e pela aparência de que eles já teriam previamente deliberado sobre o assunto em questão.
“Problemas que, provavelmente, devemos evitar”
Os e-mails de Baric também mostram um representante da NAS sugerindo aos cientistas dos EUA que eles deveriam “provavelmente evitar” perguntas sobre a origem do SARS-CoV-2 em reuniões bilaterais que planeavam com os especialistas chineses da Covid-19. Os e-mails em Maio e Junho de 2020 debateram os planos para as reuniões. Os cientistas americanos participantes, muitos dos quais são membros do Comité Permanente da NAS para as doenças infecciosas emergentes e ameaças à saúde no século 21, incluíam Ralph Baric, Peter Daszak, David Franz, James Le Duc, Stanley Perlman, David Relman, Linda Saif e Peiyong Shi.
Os cientistas chineses participantes incluíam George Gao, Zhengli Shi e Zhiming Yuan. George Gao é Director do Centro de Controlo de Doenças da China. Zhengli Shi lidera a investigação de coronavírus no Wuhan Institute of Virology, e Zhiming Yuan é o Director do mesmo instituto.
Num e-mail para os participantes americanos sobre uma sessão de planeamento, o oficial de agenda sénior da NAS, Benjamin Rusek descreveu o propósito da reunião:
Para informá-lo sobre o contexto do diálogo, discutir os tópicos / questões (listados no seu convite em anexo) e questões que provavelmente devemos evitar (questões sobre a origem, política)…
Para maiores informações:
O link para os e-mails do professor Ralph Baric, da Universidade da Carolina do Norte, pode ser encontrado aqui: E-mails de Baric (83.416 páginas)
Fonte Original do Artigo: https://usrtk.org/biohazards-blog/new-emails-show-scientists-deliberations-on-how-to-discuss-sars-cov-2-origins/
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